O fascínio pelo vazio transitório: Espaços Liminares

Daniel Medeiros
4 min readJan 30, 2023

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Canal de Veneza inabitado

A pandemia do COVID-19 nos forçou a encarar uma realidade que há muito (quiçá nunca) encaramos antes: a realidade do isolamento. A realidade que nos força a ver para além dos dias cheios e das metrópoles superlotadas. Quando a razão das coisas se perde e a realidade das coisas muda totalmente, a utilidade daquilo que parecia ubíquo instantaneamente parece um tanto inútil.

Os Espaços liminares durante a pandemia são exatamente isso: uma amostra da inutilidade de espaços que perderam sua função, que foram, intencionalmente ou não, roubados da sua utilidade principal, a de servirem algum propósito humano, e sem a possibilidade da interação humana, ficam assim, vazios.

A imagem que originou a discussão dos espaços liminares

Posso estar entrando na moda um pouco tarde, mas vi recentemente um vídeo sobre espaços liminares e o assunto me deixou bastante intrigado, e decidi escrever de forma descompromissada sobre.

A definição mais aceita pela internet, é a seguinte: Um espaço liminar é um espaço de transição entre um ponto e outro, entre o que era e o que vai ser. Uma porta, um vão, um limite, um limiar (tanto que a palavra liminar vem do latim limen, que significa limite).

Mas o que exatamente me fascina e intriga (assim como milhares de pessoas) sobre os tais espaços liminares?

A sua fluidez.

No sentido de que tudo neste século mais recente tem sido fluido, líquido até, como Bauman gosta de chamar. Os espaços gostam de mostrar e iterar as infinitas possibilidades do vazio, a sensação de que tudo é sonho, de uma forma, e tudo, ou precisamente nada pode acontecer. Numa vida onde tudo é extensamente corrido, obrigatório e rotulado, são raros os momentos de indefinição absoluta, de inutilidade, de total fuga ao propósito original.

Todo o propósito inicial dos espaços liminares é o de travessia efêmera, nunca de abrigo ou de estadia. Mas o que acontece quando encontramos abrigo justamente nos espaços originalmente passageiros? O que acontece quando aquilo cujo o único propósito é justamente o oposto do que fazem dele?

Uma escada serve para chegar de baixo para cima, ou de cima para baixo, uma porta para entrar, ou para sair, a estética dos espaços liminares é justamente sobre questionar a necessidade da utilidade dos espaços, de questionar o que sobra quando tiramos a utilidade daquilo que teoricamente existe apenas para cumprir uma função? Para demarcar um limite entre um ponto e outro?

O terror sutil da liminalidade

Em um ponto diferente, existe também a invocação do sentimento de desconforto ao olhar para imagens assim. A sensação de deslocamento, o pressentimento de que algo ruim está/poderá acontecer, que vem justamente do vazio proporcionado. A ideia de perceber também aquilo que falta, em vez de só aquilo que preenche. Os espaços liminares nos obrigam a lidar com a falta do que sempre esteve, com a possibilidade de nunca mais ser preenchido aquilo que outrora foi.

O horror que lhe sobe as veias devagar, e lhe arrepia os cabelos um por um, em vez daquele que instantaneamente te assusta e eleva seus batimentos, mas sim os gradualmente faz acelerar, quase que imperceptivelmente. O horror talvez seja misturado com a realização do sentimento que você não deveria estar ali, ou que pelo menos não sozinho. O sentimento prevalente de que algo se esconde e está para acontecer com você. Igualmente assustador também o sentimento de se estar preso num vazio, de não poder sair do espaço de transição e passar para a próxima etapa, de estar completando o mesmo ciclo ad nauseam. E de não saber porque, de estar se perguntando constantemente porque se repetem as mesmas coisas, como se tudo fosse de certa forma inútil.

O conforto paradoxal

Apesar do que foi dito anteriormente, esses ambientes podem trazer algum senso de conforto, no sentido de que a calma desses espaços transitórios pode ser um belo contraste com a loucura do cotidiano. Um metrô que diariamente está lotado e caótico pode se tornar uma calma visão quando se está quase ou totalmente vazio. Esses espaços podem nos dar um sentimento de tranquilidade, um senso de paz que os espaços do dia a dia não podem. A necessidade constante de cumprir prazos, tarefas e obrigações nos roubou do ócio de apreciar o vazio transitório das coisas diárias. Nos roubou a contemplação das infinitas possibilidades que existem nas transições, enquanto nada é feito, tudo é igualmente possível.

Sejam nas madrugadas ociosas, que representam perfeitamente a ideia da transição que tudo possibilita, sejam nos espaços físicos que denotam a ideia do vazio, os espaços liminares nos passam uma ideia de sossego e de descanso da incessante cobrança do cotidiano. Mas infelizmente, como é de sua própria natureza, a transição é finita, passageira, e não podemos viver eternamente nos espaços transitórios, e eventualmente temos que cruzar as barreiras para a próxima etapa.

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Daniel Medeiros
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Written by Daniel Medeiros

26, entusiasta de card games, estudante de administração e apreciador de conhecimentos inúteis

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